segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Vergonha versus Culpa


Se você puder escolher entre sentir vergonha ou sentir culpa, o que escolheria?

Ainda não respondeu?

Então respondo eu. Sem qualquer dúvida, sem qualquer titubear, prefiro sentir culpa.

(Você pode estar se perguntando por que enfiei o conceito de culpa aí. Por serem duas instâncias psíquicas que podem aparecer em resposta a erros. Só isso.)

Quando digo que errei, digo que conheço o "certo" mas não quis, não pude ou não consegui fazer "certo". Posso procurar explicações para diminuir minha culpa, examinar as circunstâncias que me levaram ao erro, pecado, crime ou transgressão. Dizendo-me culpada, estou afirmando que seria capaz de acertar. Estou dizendo ainda que posso treinar-me errar menos. Enfim, coloco-me como alguém capaz.

Sentir culpa pressupõe o conhecimento das causas do erro. Parece-me até que é da letra da lei que desconhecer a regra atenua, mas não isenta de culpa.

Encaramos a culpa como resultante de uma falha na relação entre o culpado e regras do mundo. Culpa fala erro, não de incapacidade. Em relação a ela cabe julgamento, perdão ou mesmo absolvição. A culpa pode desaparecer sem deixar nódoa ou marca se tivermos pago por ela.

E a vergonha?

Esta tem a ver com incapacidade de algum tipo. É diretamente referida à auto-estima. Como é que você imagina que você mesmo deveria ser para ser digno de seu próprio amor e aprovação?

Você pode perfeitamente "morrer de vergonha" de certos atos, fatos, circunstâncias das quais ninguém jamais te culparia. Quando nos envergonhamos, o olhar do outro somado ao nosso desprezo por nós mesmos, torna viver o momento insuportável. Todos existem, todos estão ali, mas o envergonhado gostaria de desaparecer para que a falha que o envergonha não seja percebida. Tem a ver, a vergonha, com uma depreciação fatal, instantânea de nós mesmos. Quando alguém enrubesce, aquele que o vê enrubescido pode nem saber por quê, mas sente, o envergonhado, que está inadequado, que mostrou-se inapto, atrasado, estabanado, ou simplesmente errado. Escorregar e cair no meio da rua deixa qualquer um envergonhado. Para isto não há nem condenação, nem perdão. Portanto, não há absolvição.

Já houve tempo em que a área genital do corpo humano era chamada de "vergonhas". A pessoa pilhada nua, até hoje, cobre com as mãos seus genitais como último recurso para evitar a vergonha total. Muitas situações constrangedoras são regradas por leis e mandamentos cuja função é nos proteger de passar vergonha. Roubar nos torna culpados, ser pilhado roubando nos faz morrer de vergonha – além da culpa. Eu imagino que o reflexo de cobrir os genitais, quando pilhado em nudez, tenha a ver com o perigo do outro conhecer o nosso desejo sexual ou a ausência dele. Uma ereção diante de uma mulher-tabu (mãe, irmã, filha) é para ser escondida. De qualquer forma não nos convém sermos traídos por atos-reflexos. Estes traem desejos, inaptidões. Mostram o que não queremos, por mil motivos, mostrar. É proibido desnudar-se em muitos lugares. Mas em outros é permitido. "Pode se despir, sou médico", diz-se nos consultórios. Dissimulamos a pobreza ou a carência em certas circunstâncias, mas quando queremos um empréstimo ou uma ajuda apresentamos a carência.

Vergonha é paralisante, pode impedir nossa participação em certos eventos. Vergonha do próprio corpo pode nos impedir de freqüentar lugares esportivos. A vergonha é inesperada, desconcertante. O gago fica mais gago por vergonha de ter gaguejado. Quem enrubesce fica mais vermelho de vergonha de ter enrubescido. Quem sua nas mãos sua mais de medo que percebam o seu suor. Todos queremos funcionar bem. Disfunções que não são culpa de ninguém, mexem com a nossa auto-estima. Uma espinha na ponta do nariz é razão para não sair de casa. Não saber que talher usar num banquete constrange quem acha que devia saber. Muitos tem vergonha de pedir orientação no trânsito e ficam perdidos pelas ruas.

Narcisismo e vergonha caminham em paralelo. Quanto maior a vaidade maior o medo da vergonha.

A culpa desencadeia uma série de reações pessoais e sociais. Até uma conversa pode diminuir o efeito de certas culpas. Um julgamento pode absolver ou condenar. As leis, os estatutos, falam dos erros pelos quais nos culpam mesmo que não nos sintamos culpados, e falam também de castigos. Aceitam-se os veredictos. Já para a vergonha o mundo dá poucos remédios, que no final resume-se a umas poucas medidas: da vergonha só nos livramos aceitando-nos com nossos defeitos, o que significa aceitar-se sem esconder as próprias faltas, falhas ou carências. O remédio fica em torno de fortificar a auto-estima a ponto de nos permitir suportar o olhar do outro sem nos sentirmos na obrigação de dissimular o erro. A vergonha tem um parente além do narcisismo: é prima irmã da hipocrisia. No que tange às situações de culpa, a hipocrisia não basta. É preciso ocultar o delito. Para a vergonha ocultação não é suficiente.

Existem culpados que se envergonham até de ocultar o mal feito, e o exibem, mesmo que isto redunde em exclusão ou prisão. Será que isto tem a ver com o dito popular que o criminoso sempre volta ao local do crime? Seria para não confessar sua vergonha de si mesmo? Ou seria um desejo secreto de ser pilhado e assim sobrecarregar-se com a vergonha além da culpa?




Fonte: Anna Veronica Mautner

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65642003000200011&script=sci_arttext

Um comentário:

  1. Bhá!
    Prefiro a vergonha que dá e passa, rs,rs
    Já provei do veneno de sentir culpa, sendo culpada uma vez é o gosto é de fél.

    Fica na paz !

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